Num documentário intitulado “Francesco”, que ainda não está à disposição do público, o papa Francisco teria se pronunciado a favor da união civil entre pessoas do mesmo sexo. Foi o suficiente para surgirem acusações de que o papa estaria avalizando e legitimando um comportamento considerado uma abominação por vários textos bíblicos e pela doutrina da Igreja.
A palavra abominação, em si, significa “ato de odiar, de detestar”. Para muitas pessoas, a palavra “abominação” sugere um comportamento pecaminoso ou uma prática sexual escandalosa, contrária aos mandamentos de Deus, às doutrinas cristãs e à própria natureza humana. Coisa do demônio! Evidentemente, aqui não temos espaço para um estudo profundo da palavra abominação nos diferentes textos bíblicos. Mas não custa tentar entender melhor seu significado e o seu uso.
No texto hebraico da Bíblia, a palavra geralmente traduzida por abominação (tocevah) define os comportamentos e as práticas necessárias para garantir a santidade sacerdotal exigida para a presidência dos sacrifícios (cf. Lv 18,24-30). Segundo o livro do Levítico, para que um sacrifício fosse perfeito e agradável a Deus, o sacerdote deveria estar puro. Lendo os diferentes textos do Levítico, fica claro que abominação é tudo aquilo que pode tornar um sacerdote impuro. Por isso, a palavra tocevah pode ser traduzida por “sujeira” ou “impureza”. Assim, determinados comportamentos humanos eram vedados ao sacerdote, para que ele se mantivesse puro. Uma palavra que melhor traduz esta situação seria a palavra “tabu”. Existem no Levítico vários tabus alimentares (Lv 11), sanitários (Lv 13) e sexuais (Lv 18). Dentre estes possíveis comportamentos, existiam vários interditos de relacionamentos sexuais, tais como não manter contato sexual com a sogra ou com uma neta (Lv 18,10). Da mesma forma, tendo em vista a pureza, o sacerdote não deveria manter contato sexual com outro homem (Lv 18,22). São comportamentos escandalosos que provocam asco, nojo. Mas pelo fato de ser um comportamento nojento, não significa que este comportamento seja “pecado” ou “erro moral”. Para isso a língua hebraica tem outras palavras. Daí se entende que, para a Bíblia, o tabu alimentar que impede de comer porco, camarão ou lagosta seja abominação, “repugnante” ou “nojento”, mas não um pecado. Para nós, aqui no Brasil, comer carne de cachorro seria uma abominação (nojento), mas não podemos dizer que os coreanos cometam um pecado se deliciando com esta iguaria. Podemos concluir que, para a Bíblia, o ato homogenital interdita um sacerdote para o culto, porque o torna impuro. É um tabu necessário para manter a pureza, mas não é um pecado.
Como cristãos, nós não estamos mais presos às determinações legais e morais contidas na Torá hebraica. Temos que ver o que significa abominação no Novo Testamento. Aqui entramos num terreno meio pantanoso porque existem várias palavras gregas para traduzir a palavra hebraica. Vamos ficar com bdélugma, que é a palavra usada para traduzir em grego as restrições comportamentais presentes no Levítico. Considerando-se um povo sacerdotal (cf. 1Pd 2,9), houve grande discussão se as comunidades deveriam ou não manter os tabus do Levítico. O Concílio de Jerusalém libera as comunidades das abominações alimentares, mas mantém as abominações sexuais (cf. At 15,28-29). Por isso, alguns textos do NT retomam o uso desta palavra no Levítico. Este sentido é assumido em Romanos (2,22; 21,8); Tito (1,16) e no Apocalipse (Ap 17,4-5). Novamente este espaço não permite aprofundamentos destes textos.
Mas o que verdadeiramente deve nos orientar nesta questão é ver como Jesus usa esta palavra abominação (bdélugma). Lendo os quatro evangelhos, nossa primeira surpresa é notar que Jesus não usa esta palavra. Não há nenhuma condenação de Jesus a qualquer tipo de comportamento humano no campo da pureza, envolvendo a sexualidade ou a alimentação. Por isso mesmo, quando ele usa esta palavra, é digno de ser respeitado e acatado.
Jesus usa bdélugma apenas duas vezes. Em uma destas vezes a palavra não vem dele, mas de uma citação que ele faz do livro de Daniel (Mc 13,14; copiado em Mt 24,15), definindo abominação como a profanação do recinto sagrado do templo por uma imagem idolátrica pagã. Para Jesus, abominação está relacionada com a idolatria.
A segunda vez que Jesus usa a palavra abominação está em Lucas (16,15), numa disputa entre ele e os fariseus, a quem ele chama de “amigos do dinheiro” (16,13-14). Vale a pena ler o verso todo: “vós pretendeis passar por justos aos olhos dos homens, mas Deus conhece os vossos corações. Porque o que os homens têm por elevado é uma abominação aos olhos de Deus”. Para Jesus, não existe comportamento humano mais abominável que o amor ao dinheiro (Mt 6,24; Lc 16,13). Este amor é considerado “elevado” ou “exaltado” aos olhos humanos. Todos querem enriquecer. Mas este amor ao dinheiro é abominável aos olhos de Deus. Ou seja, para Jesus a única e verdadeira abominação é o dinheiro. E o único comportamento humano que ele define como abominável é a ganância, a idolatria do dinheiro.
Fiel aos ensinamentos de Jesus, vemos que o papa Francisco acolhe o casamento entre pessoas do mesmo sexo, mas combate vigorosamente a abominação do dinheiro. Em suas encíclicas, em seus pronunciamentos e em suas inciativas, Francisco questiona o abominável sistema financeiro atual, capaz de criar uma abominável concentração de renda nas mãos de 1% da população mundial. De fato, não existe sistema mais abominável e nojento que o Neoliberalismo. Toda a indignação de Francisco com este sistema se expressa na frase lapidar que resume bem o magistério pontifício diante desta abominação: Esta economia mata! (EG 53).